Domenèc Torrent deixou o Flamengo em um momento conturbado. Ficou em silêncio. Mesmo nos meses que se seguiram negociando o pagamento da multa rescisória de seu contrato, que tinha prazo de dois anos. Continuou calado. Até agora.

O repórter André Hernán entrevistou o técnico espanhol, pupilo de Pep Guardiola, após a sua saída precoce do Flamengo com um aproveitamento de 63.8% em 26 jogos, e goleadas que acabaram sendo determinantes para sua demissão.

A diretoria decidiu cortar o treinador depois de um 4 a 1 para o São Paulo, e um 4 a 0 para o Atlético-MG. Quando ele saiu, o time ainda disputaria as oitavas de final da Libertadores, contra o Racing, e as quartas da Copa do Brasil, contra o São Paulo. Acabou eliminado nas duas competições.

Confira os principais trechos da entrevista:

O Flamengo está com um treinador que todos querem que saia. O Flamengo tem alguma chance, mas parece difícil que ganhe o Brasileirão. Quando você saiu do Flamengo, quando foi dispensado, o Flamengo estava nas três competições, com chances na Libertadores, Copa do Brasil e Brasileirão. Considerando todo esse cenário atual, fica a sensação que o problema não era a comissão do Dome?

— Nós tínhamos certeza disso. Nós tínhamos muita confiança, conversávamos com os jogadores, não tinha a intenção de ganhar tudo, seria muito complicado, mas eu sempre dizia que poderíamos ganhar 2 títulos, porque, para mim, o time estava evoluindo bem. Apesar do último jogo, estava evoluindo bem, estávamos felizes com o desenvolvimento como um todo. Mas estamos falando de futebol, agora sei um pouco como o Brasileirão funciona. A cada 3 ou 4 meses, infelizmente, os treinadores são trocados. É impossível fazer um bom trabalho assim, porque… Aliás, analisando o histórico, vi que é muito difícil ganhar o Brasileirão.

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— Só o São Paulo, em 2003, ganhou 3 vezes seguidas, e o Flamengo, na época de ouro do Zico, nos anos 1980, também ganhou várias vezes. Mas o Brasileirão é muito complicado por isso, porque é impossível dar continuidade a um trabalho. Há muita impaciência, esse é o dia a dia. Aqui o projeto é ganhar no próximo domingo. Sei que é muito complicado ganhar campeonatos aqui, mas todos deveriam se perguntar por que, se realmente essa é a melhor opção. Não sei de cabeça, mas, de 20 times, acho que trocaram 16, 17 treinadores. Essa não é a melhor maneira de implementar uma filosofia. Eu sou europeu, venho da Europa. Aqui não entendemos essas coisas, porque temos certeza absoluta de que ganharíamos títulos.


Como viu sua saída, da forma como tudo aconteceu? Em determinado momento, estava trabalhando para a próxima partida, e o trabalho foi interrompido. Você se sentiu triste por tudo o que aconteceu e da maneira como aconteceu?

— Claro. Primeiro, fiquei triste porque não pude sentir a torcida no Maracanã. Um dos objetivos era sentir a torcida no Maracanã. Além disso, porque estávamos nas quartas de final da Copa… No ano passado, saíram nas oitavas de final. Estávamos nos preparando quando foram me dizer que estávamos fora do Flamengo. Estava trabalhando com vídeos do São Paulo, e aproveito para dizer que estávamos trabalhando com um time maravilhoso de analistas do Flamengo, não sei se são usados ou não, mas o departamento de análise do Flamengo me ajudou muito. Trabalhávamos muito com eles. Estávamos trabalhando em conjunto para a partida contra o São Paulo, queríamos jogar um pouco diferente, porque fomos derrotados em casa. Achávamos que tínhamos a solução mais adequada, até que chegou o momento em que fomos dispensados. Mas a sensação que eu tinha desde o início, e comentava como a equipe, quando liderávamos havia várias rodadas, que, com a primeira partida que perdêssemos, estaríamos fora. Por quê? Pela sensação que eu tinha lá dentro. Nunca senti apoio de verdade. Os jogadores me apoiavam. Se quiser, podemos falar deles, das barbaridades que disseram, se estávamos zangados com um ou outro jogador, o que é mentira. Disseram muitas mentiras em dois meses.

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— O que eu sentia, o que nos parecia, é que estaríamos fora após perder a primeira partida. E foi o que aconteceu. Não sentiu nenhuma garantia, nenhum apoio da diretoria. Nunca. Nunca. Eram coisas muito… Nunca. Eu agradeço muito que tenham me contratado. Eu tinha contato com Marcos Braz, da diretoria, e Bruno Spindel. São os únicos com quem falava e interagia um pouco. Mas… como pode ser que, a cada partida, você esteja preocupado com se ganha ou não e como vão olhar para você dependendo do resultado? Como eu venho de outros times, com outra cultura, nem melhores nem piores, apenas diferentes, nunca nos sentimos apoiados. O que aconteceu no Equador foi muito forte. Então, a partir dali, eu sabia que a diretoria não confiava mais em mim. Era isso que nós sentíamos, e era verdade. E você não pode fazer nada quando isso acontece, só trabalhar duro e tentar ganhar as partidas, porque, quando você percebe isso, a única coisa que pode te salvar são os resultados, só isso. Nem o trabalho, porque aqui um trabalho… Nenhum treinador no mundo consegue mostrar nada em três meses. Essa liga é muito complicada. Neste ano, no mundo todo, na Premier, na Bundesliga, na Calcio, os resultados têm sido muito estranhos. Nunca aconteciam goleadas nas equipes contrárias. A pandemia… Aconteceram mil coisas, mas o mais importante é trabalhar à vontade e se sentir apoiado. Eu sentia o apoio dos jogadores, de muita gente que trabalhava no clube, estava muito satisfeito com os analistas, com o treinador de goleiros, com os fisioterapeutas etc. Mas nunca senti o afeto de… E devem ter seus motivos.

— Eu sabia desde o início. Acho que o problema do Flamengo está dentro do Flamengo. Está dentro. Dentro do Flamengo. Enquanto eles não esclarecerem as coisas entre si, isso vai continuar com Dome, com Ancelotti, com Klopp, com Pep Guardiola, com quem for. Esse é o grande problema do Flamengo, porque quando vemos um time com 125 anos de história, que tem a maior torcida do mundo, e só ganhou seis Brasileirões, três Copas e duas Libertadores, é porque tem algo acontecendo lá dentro. Quando vemos um clube que é o que mais trocou treinadores em todo o Brasileirão, é porque algo acontece lá dentro. Então foi isso que sentimos desde o primeiro dia, porque sabíamos que muita gente lá dentro não nos queria. Sabíamos. Acho que todo mundo que trabalha no Flamengo sabe o que acontece lá.

Todo mundo.

— Sim. Tem gente que não se atreve a dizer, do lado de fora… Há a torcida autêntica e a torcida organizada. Bom, é isso que está acontecendo no Flamengo.

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Você sentiu que, dentro da diretoria, Marcos Braz e Spindel tinham uma ideia, principalmente sobre o seu trabalho, e, por exemplo, o presidente, pessoas próximas do presidente tinham outra ideia, não te queriam? Foi mais ou menos isso?

— Nunca falei com essas pessoas. Em três meses, eu falei uns 5min com o presidente. Eu só conversava rapidamente com Marcos Braz, da diretoria, e com Spindel, que estava praticamente no dia a dia lá, não todos os dias, mas ia com mais frequência à sede. Agora lembrei que, quando fui contratado… Agora a gente vai lembrando de muitas coisas. Nunca me perguntaram como jogava ou como queria jogar. Não sei se sabiam como eu jogava ou como joguei nas outras equipes. Disseram barbaridades, como que, nas equipes em que trabalhei, sempre era goleado. Isso é mentira. No ano passado, o New York foi o time mais goleador da categoria e o segundo menos vazado. Então há coisas que… Não te atinge quem quer, e sim quem pode, mas eu ficava triste por falarem mal de nós lá dentro, de forma interesseira, não sei por que, porque se atacam o treinador e os jogadores do Flamengo, isso atinge o próprio time. Eu não confio nas pessoas que sempre repetem esta frase: “Nada do Flamengo, tudo pelo Flamengo.” Normalmente, é o contrário, é nada… Quando você tem que repetir muito isso, é porque alguma coisa está acontecendo com você. Inclusive, muitas vezes eu sentia que, quando perdíamos, alguém lá de dentro ficava feliz, era o que eu sentia. Minha equipe e eu tínhamos essa sensação. Então era muito complicado trabalhar assim. Fui muito feliz trabalhando no Flamengo, por causa dos jogadores. Nenhum me decepcionou. Apesar do que a imprensa diz, nunca briguei com ninguém. Fui muito feliz com as pessoas nas ruas no dia a dia. Quando fomos dispensados, as pessoas que eu encontrava no supermercado, era eu que ia estava sozinho aí, em restaurantes ou quando passeava de bicicleta, todos me apoiavam, me incentivavam.

Por: GE / André Hernán